“A matemática particular do agropop” por Raoni Rajão e Carlos Rittl

Em artigo recente no jornal Valor Econômico, Maurício Nogueira apresentou uma série de afirmações extraordinárias sobre uso da terra e agropecuária no Brasil. Aprendemos, por exemplo, que o país está ganhando floresta, e em enorme escala: entre 1990 e 2016, teríamos desmatado 38 milhões de hectares, mas, para cada hectare desmatado, 1,3 estaria recuperado ou em recuperação. Ou seja, o Brasil supostamente ganhou quase 50 milhões de hectares de vegetação em 26 anos.

Somos informados também de que 28,5% do território Brasileiro é ocupado pela produção agropecuária, uma cifra já distante das sugestões de outros defensores do chamado “agropop” — que escondem a extensão de pastagens para citar que apenas 8% do país está ocupado pela produção. Além de produzir em uma área supostamente inferior à média mundial, de 30%, o produtor brasileiro, prossegue a missiva, obteve tamanho progresso mesmo sendo “a vítima mais exposta da sociedade”, oprimido por uma “pesada burocracia” estatal, por “agentes corruptos” e pelos “adeptos da agenda do contra”, cuja atuação aumentaria os custos de produção ao “desmoralizar a imagem de quem produz”.

Não bastasse isso, o produtor rural ainda é tachado de poluidor, já que a metodologia de cálculo de emissões de carbono pela pecuária “está longe de consenso”, uma vez que desconsidera o carbono que é removido e incorporado pelas pastagens. Bois, ensina o autor, não são criados sobre concreto, afinal.

Todos sabemos que duas pessoas podem olhar para a mesma imagem e ver coisas diferentes. É então natural que alguém ligado mais fortemente à agenda do agronegócio tenha um viés que privilegia interpretações de dados que ajudam a imagem do setor. No entanto, aquilo que os sociólogos do conhecimento científico chamam de flexibilidade interpretativa tem limites, e Nogueira acaba por mergulhar seu leitor desavisado numa matemática muito, muito particular.

Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias: a alegação de que o Brasil estaria recuperando mais florestas do que perdendo simplesmente não faz sentido, e é caso de perguntar de onde Nogueira tirou esse dado. Todas as fontes primárias de dados de cobertura e uso da terra no Brasil mostram que houve perda líquida de cobertura florestal em toda a série histórica. O dado oficial do governo brasileiro contido na sua Terceira Comunicação Nacional enviada às Nações Unidas mostra que o país perdeu 84 milhões de hectares de vegetação primária entre 1994 e 2010. Por outro lado, foi possível observar um aumento na área de vegetação secundária (decorrente majoritariamente da regeneração) em 31% disso. Ou seja, para cada dez hectares desmatados, apenas três voltarão a ter alguma vegetação, muito longe dos 13 hectares sugeridos pelo autor.

É preciso questionar também um dos mantras do agropop: a afirmação que as emissões de “ciclo de vida” da pecuária seriam neutras ou negativas, já que as pastagens, ao crescer, incorporam carbono correspondente ao arroto do gado. Hoje essa informação ainda não existe no inventário oficial de emissões do país, mas a equipe do Britaldo Soares-Filho na UFMG já calculou para o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) as remoções e emissões esperadas da pecuária nas próximas décadas. Ao alcançar e superar a meta de 30 milhões de hectares de reforma de pastagem prometidos pelo Brasil até 2030 em sua lei de clima e em sua meta no Acordo de Paris, o país conseguirá remover pelo solo anualmente 48 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Com essa medida, as emissões por quilo de carne cairão mais de 20%, graças também à melhoria nutricional e genética do plantel, que irá conseguir ganhar mais peso em menos tempo.

Porém, para fazer frente às metas de produção, o Brasil precisará continuar aumentando seu rebanho, gerando emissões anuais diretas de 333 milhões de toneladas de CO2 em 2030, de acordo com o mesmo estudo. Essa conta não considera ainda as emissões e remoções provindas do balanço de carbono nos solos dos pastos que segundo um cálculo do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa), do Observatório do Clima, aumentariam em 30% as emissões do setor, devido ao fato de que ainda existem mais pastos degradados do que bem manejados no país. Ou seja, por mais que a restauração das pastagens seja o caminho correto a seguir — porque reduz as emissões e aumenta a renda do produtor –, ainda estamos longe do utópico bife “carbono zero”.

Finalmente devemos nos lembrar de que algumas vezes os dados diferem entre os autores simplesmente por questões metodológicas e incertezas que são inerentes à ciência. Nogueira nos acusa de “inflar a área de pastagens para superestimar os efeitos do desmatamento” por citar a cifra de 230 milhões de hectares, e apresenta no seu lugar 165 milhões: uma estimativa que tem origem provável no Censo Rural de 2006, mas também coincide com o valor calculado pela equipe de Larte Ferreira, da Universidade Federal de Goiás. Por outro lado, estudos como os de Britaldo Soares-Filho, da UFMG, e Gerd Sparovek, da Esalq-USP, apontam valores mais altos, entre 190 milhões e 226 milhões de hectares de pastagem ou de áreas de agricultura com pastagem. De toda forma, como apontamos, a agropecuária — somando-se pastos, áreas agrícolas e silvicultura — ocupa entre 30% e 32% do território, e não 28,5% citados pelo artigo. Portanto, repetimos: o Brasil está perfeitamente dentro da média mundial de território ocupado pela produção rural.

Mas o “x” da questão não é se o número certo está 5% para lá ou para cá. O ponto é que, enquanto a agropecuária não precisa derrubar florestas para produzir mais, ela precisa da floresta em pé para continuar viável. Vários estudos já mostram os impactos do desmatamento na diminuição das chuvas e aumento da temperatura, e apontam que a agropecuária poderia perder mais de 30% de sua produtividade se o desmatamento na floresta Amazônica manter seu ritmo atual. Por isso, a eliminação do desmatamento não deveria ser uma agenda somente dos ambientalistas, mas também da agropecuária, visto que aos poucos estamos matando a galinha dos ovos de ouro do setor.

Existe no Brasil um agronegócio moderno, que pensa sistemicamente e em longo prazo e que vê valor em cumprir as leis. Os esforços desses produtores e produtoras precisam ser reconhecidos. E, mesmo que seja inevitável algum aumento das emissões diretas da atividade, este pode ser compensado pelos ganhos com o bom manejo de carbono no solo e pela eliminação progressiva do do desmatamento, com recuperação de florestas em larga escala. O setor estará gerando riqueza de forma cada vez menos carbono-intensiva.

Mas, para que essa trajetória se consolide, o agro precisa reconhecer que não basta continuar sendo o que é. Existe um lado ruim do setor, baseado na grilagem de terras, numa pecuária primitiva que gera emissões, destrói a biodiversidade compromete os mananciais, e em trabalho análogo à escravidão, ao invés de contribuir para a economia. Esta “banda podre”, infelizmente, é a que encontra maior ressonância no Congresso Nacional. Para saná-la, o setor produtivo precisa reconhecer essa realidade e se aproximar da ciência ao invés de continuar tampando o sol com a peneira de números infundados e interpretações parciais. Somente assim conseguiremos alcançarmos juntos as metas climáticas estabelecidas no Acordo de Paris. Desse modo o Brasil poderá ser líder não só na produção agrícola, mas também na gestão ambientalmente sustentável.

Raoni Rajão é professor da Universidade Federal de Minas Gerais e integrante do Observatório do Código Florestal.

Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima.

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